Vinho assemblage: a arte dos blends de uvas na enologia

Vinho Assemblage, blend, corte… você talvez já tenha ouvido falar destes termos. Mas, afinal, o que querem dizer e…

vinho assemblage

Vinho Assemblage, blend, corte… você talvez já tenha ouvido falar destes termos. Mas, afinal, o que querem dizer e qual sua importância no mundo da produção de vinhos? Quem aprecia muito o universo dessa querida bebida milenar precisa conhecer essa técnica, amplamente utilizada na enologia, que é base de tantos vinhos famosos. Neste artigo, você irá aprender mais sobre diversos aspectos dessa “ferramenta” que muitos enólogos empregam na vinificação de alguns de seus rótulos mais especiais.

Vinho assemblage vs. vinho varietal

Assemblage quer dizer, literalmente, “montagem” em francês. Na enologia, é a mistura de diferentes vinhos de base para “montar” um novo vinho que tenha um determinado estilo que a vinícola deseja. Por isso, também leva outros nomes como blend ou corte, que nada mais são do que seus sinônimos nesse universo (respectivamente em inglês e português). Portanto, um vinho com blend de uvas, ou com um “corte de variedades”, é um vinho assemblage.

Já o vinho varietal é aquele feito com apenas uma variedade de uva. É esse o caso quando o rótulo traz uma única uva em destaque, como Cabernet Sauvignon, Merlot, Malbec, Chardonnay etc. Porém, as legislações de vários países permitem a venda de vinhos como varietais mesmo contendo certas quantidades de outras uvas. Isso faz com que sejam blends também, na prática, com a uva do rótulo apenas predominando. Países como França, Itália e Brasil, entre outros, permitem até 15% de outras variedades para um produto seguir como varietal. Mas, nos EUA por exemplo, pasmem: os vinhos podem conter até 25% de uvas diferentes e ainda serem levarem seu nome apenas pela uva que responde pelos outros ¾ do volume do corte.

Os diferentes tipos de assemblage nos vinhos e suas origens

Como você viu, um assemblage é a mistura de vinhos para formar um novo resultado em que as partes irão se complementar. A premissa aqui é que os vinhos de base tenham características distintas para aportar a essa nova “montagem”, de modo que o resultado seja mais consistente, complexo, diferenciado ou, simplesmente, viável, como veremos no caso dos field blends. De maneira simples, essa variação em cada vinho de base pode ser obtida através de diferentes variedades, processos produtivos distintos ou diferentes safras. Vejamos cada caso:

Como cada variedade de uva influencia um vinho assemblage

Conforme vimos no artigo sobre vinhos tintos, cada tipo de uva tem características próprias. Por isso, aparecem nos blends em geral complementando o perfil umas das outras. Adiciona-se Cabernet Sauvignon quando se quer agregar corpo ou taninos em um corte. Merlot geralmente aporta um perfil mais frutado e “redondo”. Sauvignon Blanc leva alta acidez e notas herbáceas, e assim por diante. Dessa forma, os cortes feitos com uvas distintas são um dos métodos mais populares de assemblage e veremos a seguir como isso funciona.

Blend de uvas

A vinícola produz dois ou mais varietais que serão combinados em algum momento do processo de vinificação, observando os quesitos acima sobre características das variedades. Suas proporções são variáveis, conforme o desejo do produtor para o estilo do vinho final. 

Existem ainda inúmeras opções no processo de produção de um vinho assemblage com diferentes uvas que podem gerar resultados distintos, como tempo e material de estágio de envelhecimento de cada varietal, descanso sobre as borras (sur lie) e outros. As partes podem, ainda, ser fermentadas em conjunto desde o início. Cada opção dessas resultará em diferentes nuances na assemblage do vinho, e a combinação dessas múltiplas possibilidades é uma das riquezas que esses vinhos podem nos proporcionar.

Uma variação curiosa nesse método é o field blend, muito comum em Portugal (principalmente no Douro e Dão) e algumas regiões da África do Sul e Austrália. São locais com vinhedos muito antigos, em que diversas uvas foram plantadas juntas ao longo do tempo e fica inviável identificar todas as variedades ou a proporção de cada uma em determinado local. 

Em plantações recentes, cada variedade tem seu próprio lote e pode-se determinar quais uvas irá incorporar cada vinho. Nos field blends, pelas características acima, todas as uvas de determinada área geralmente passam juntas pela fermentação. A técnica produz vinhos interessantes pela “aleatoriedade” que o próprio vinhedo dita, em muitos casos, ao longo de séculos. No caso de Portugal, chegam a ter mais de 20 variedades diferentes, tanto tintas quanto brancas, incluindo algumas famosas como Touriga Nacional, Tinta Roriz, Touriga Franca, Tinta Barroca e outras.

Blend de safras

Outro modo de assemblage é misturar diferentes safras de um mesmo varietal. A cada ano, as condições climáticas podem variar e influenciar o resultado da colheita, gerando dessa maneira diferentes qualidades de uvas. Então, alguns produtores fazem cortes dessa maneira para dar consistência a um rótulo ao longo de vários anos. 

Assim, as pessoas terão sempre o mesmo tipo de experiência com aquele vinho, independente de fatores que possam afetar uma ou outra safra. O maior exemplo desta prática é a produção dos vinhos em Champagne, onde em geral você não verá a safra nos rótulos das garrafas por esse motivo (ou verá “N/V”, sigla de Non Vintage), pois em tese qualquer garrafa daquela linha terá o mesmo perfil aromático e gustativo. Uma observação interessante é que a maioria dos Champagnes também é um corte de uvas, além de safras.

Mas como começou a ideia de fazer assemblage?

Historicamente, regiões como Bordeaux e Rhône, na França, se destacaram pela prática, apesar de não serem as únicas. O clima variável nestes locais tornava arriscado o cultivo de uma única variedade. Assim, apostar em uvas com características diferentes e complementares, bem como misturar safras, mostrou-se uma estratégia importante para garantir consistência nos vinhos e, com isso, maiores chances de comercialização contínua

Com o tempo, os produtores perceberam também que podem alcançar maiores equilíbrios de sabores, aromas, estrutura e outros aspectos do vinho final ao produzir vinhos com cortes diferentes. Isso nem sempre é possível com uma única variedade, já que nesse caso a dependência do perfil próprio da uva escolhida é muito maior.

Os blends de vinho mais famosos (e alguns inovadores)

Um ponto a se ter em mente é que nem todo vinho vai mostrar em seu rótulo a composição de seu blend. Várias Denominações de Origem (sigla DO/DOC/DOCG, ou AOP na França) famosas, por conta de suas regras, só permitem produção de vinhos com variedades específicas. 

Assim, é comum que produtos desses locais exibam só o nome de sua DO no rótulo, sem especificar uvas ou percentuais presentes no corte. Então, vamos conhecer alguns blends icônicos:

Tintos

  • Bordeaux Blend: o “corte bordalês” é, talvez, o mais famoso mundialmente, dada a circulação de seus vinhos e o crescimento estratosférico de preços nos rótulos de muitos produtores de alta qualidade da região, como Château Margaux, Lafite e outros. Destaque para a Cabernet Sauvignon e Merlot sendo que, na margem esquerda do rio que corta a região, a primeira predomina nas assemblages, enquanto na margem direita a Merlot é a rainha. Assim, os vinhos de cada lado apresentam características distintas, apesar de usarem as mesmas uvas como base principal. É comum também que utilizem a Cabernet Franc, Petit Verdot e, em menor grau, Malbec.
  • GSM: o blend que utiliza como base as uvas Grenache, Syrah e Mourvèdre, cujas iniciais foram seu nome, foi criado no Vale do Rhône, no sul da França. Ali, também serve como ponto de partida para os rótulos da famosa AOP Chateauneuf-du-Pape, que produz vinhos poderosos contendo até 14 variedades (!!) no total, incluindo outras uvas como por exemplo Cinsault e Counoise.
  • “Supertoscanos”: vinhos à base de Sangiovese em combinação com uvas de fora da Itália, como Cabernet Sauvignon, Merlot ou Syrah. Esse corte ganhou fama na década de 1970, quando os produtores italianos decidiram romper com as rígidas regulamentações de sua DOC e criar novos vinhos com uvas internacionais “fora da cartilha”. Exemplos são os agora icônicos Sassicaia e Tignanello.

Brancos

  • Champagne: como já vimos acima, costuma ter blend de safras, mas também de variedades, tendo como base um corte de Pinot Noir (uva tinta, mas vinificada sem as cascas neste caso) com Chardonnay (uva branca). Em alguns casos, inclui também a Pinot Meunier. Porém, sua produção pode ocorrer com apenas uma variedade, como nos Blanc de Blancs (100% Chardonnay) e Blanc de Noir (100% Pinot Noir ou Pinot Meunier).
  • Soave: DOCG italiana da região do Vêneto, com vinhos que utilizam pelo menos 70% da uva nativa Garganega e podem ter complementação em até 30% com Trebbiano di Soave ou Chardonnay. Apesar do nome, nada tem a ver com vinhos “suaves” difundidos pelo Brasil: Soave é um vinho branco seco, de corpo leve e bastante aromático.

Rosés

  • Côtes de Provence: o rosé do sul da França talvez seja o mais famoso do mundo, um vinho delicado e leve que é resultado de uma mistura de uvas como Grenache, Cinsault, Syrah e Mourvèdre.
  • Tavel: denominação do Rhône, na França, que produz vinhos com Grenache, Cinsault, Syrah e outras uvas típicas da região, mais complexos que os da Provence.

Vinhos de Sobremesa

  • Porto: os famosos vinhos fortificados da região do Douro, em Portugal, geralmente levam uma mistura de várias uvas da região como Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca e Tinto Cão.
  • Sauternes: os icônicos vinhos da região do Château d’Yquem que equilibram dulçor e acidez são o resultado da combinação de Sémillon (corpo), Sauvignon Blanc (acidez) e Muscadelle (aromática).

Outros blends interessantes

  • Cape Red Blend: na região de Westerna Cape, na África do Sul,  há uma combinação de variedades tintas como Shiraz, Cinsault ou Cabernet Sauvignon, com variedades brancas como Chenin Blanc ou Viognier. O resultado são vinhos tintos com muito corpo e personalidade, mas também notas aromáticas florais, por exemplo, adicionando muita complexidade ao blend.
  • “Corte Argentino”: esse não tem um nome próprio (ainda), mas vem sendo uma escolha cada vez mais frequente na enologia Argentina para criar vinhos que equilibrem o perfil potente da Malbec com as notas mais frescas e herbáceas da Cabernet Franc, fugindo do já famigerado “Malbecão Argentino”, como ficou conhecido por aqui, buscando produzir cortes mais elegantes.

Vale lembrar que o Brasil também tem um terroir propício atualmente para a produção de muitas variedades diferentes de uvas, em especial pela utilização da técnica de dupla poda, que já vimos quando falamos de vinhos de inverno. Isso faz com que tenhamos grande potencial para criar um vinho assemblage de alta qualidade, contando inclusive com alguns reconhecimentos internacionais de nossos produtos.

Harmonizando vinhos de corte e comida

Uma grande vantagem dos vinhos assemblage, quando se fala de combinar com gastronomia, é sua versatilidade. Como contêm variedades que se complementam, acabam oferecendo um perfil gustativo e aromático mais amplo e limitam-se menos às combinações tradicionais. As regras gerais de harmonização de vinhos continuam se aplicando, mas em geral com muito mais flexibilidade de opções de comidas que casam bem com vinhos de corte. Todo alinhamento entre prato e taça vai, em última instância, depender da composição do blend, como com qualquer outro vinho, mas vamos ver alguns exemplos ilustrativos aqui:

Blend tinto: Bordeaux com pratos à base de carne

Os vinhos da margem esquerda de Bordeaux, como já vimos, são predominantes em Cabernet Sauvignon, uma uva com muita estrutura e geralmente taninos altos nessa região, feitos para serem longevos. Mas também levam uma parcela de Merlot, que “arredonda” o vinho final e traz um toque mais frutado para a taça. Com isso, carnes cozidas como um Boeuf bourguignon podem ser uma grande pedida para encarar toda essa potência com uma base marcante e bem temperada.

Blend branco: Champagne com feijoada

Você achou que ia encontrar aqui uma combinação com peixes, saladas ou frutos do mar, não é mesmo? A verdade é que um Champagne costuma ser um bom coringa à mesa. Assim como a caipirinha, típica companheira da querida feijoada brasileira, os Champagne tradicionais também têm alta acidez, que equilibra muito bem a gordura do prato. Há também nele algumas notas de panificação, por exemplo, que acabam complementando bem aquela farofinha que você vai servir no prato. Além disso, seu perfil cítrico é ótimo pra combinar com a laranja, e se você, como eu, curte comer a fruta junto com o resto.

Por que você deve investir em vinho assemblage

De modo geral, como você pôde perceber até aqui, os blends têm um potencial maior para complexidade (que sempre é algo bom para quem aprecia de verdade um bom vinho), mais versatilidade de harmonização e potencial aumentado de guarda em muitos casos. Além disso, podem ter um caráter exclusivo, em função de combinações específicas que só alguns produtores conseguem fazer com perfeição, o que gera valorização, reconhecimento e oportunidade de serem presentes muito especiais. Grandes vinhos de Bordeaux viraram, inclusive, investimentos financeiros com retornos quase garantidos ao longo dos anos, dada sua demanda e produções limitadas. Seja por esses fatores, ou simplesmente pelo prazer de provar coisas novas e diferentes, os vinhos de corte deveriam estar na sua lista de degustações.

Conclusão

“Nem só de blend vive a humanidade” poderia ser um bom ditado para criarmos agora, para equilibrar tudo o que vimos aqui sobre o tema. A verdade é que existem vários vinhos excepcionais, de renome mundial, que são varietais. Exemplos como Domaine de la Romanée-Conti (Pinot Noir), Château Petrus (Merlot), Penfolds Grange (Shiraz), Don Melchor (Cabernet Sauvignon) e outros grandes rótulos só reforçam uma das grandes belezas do mundo do vinho, que é a variedade de opções de qualidade que temos à nossa disposição. 

Ainda assim, se você realmente aprecia vinhos e gosta de conhecer tudo que eles têm a oferecer, faça bom proveito do “fator multiplicador” do vinho assemblage. Com certeza isso irá expandir mais seus horizontes enquanto amante dessa maravilhosa bebida.

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